Reimaginando hospitalidade: práticas de inclusão social
Hospitalidade é comumente concebida como a relação entre anfitriões e visitantes. Para a indústria da hospitalidade, receber bem o cliente é um preceito quase que sagrado, o pilar que sustenta um negócio bem-sucedido. Eu, que trabalho com populações refugiadas e imigrantes, gosto de imaginar hospitalidade como uma prática de inclusão social. A pergunta: “como recebemos ‘o outro’ em nossos espaços públicos e privados, e na intimidade de nossos lares e coração” permeia meu trabalho e norteia as ações da organização a qual presido, a Círculos de Hospitalidade.
Em 2016, durante a crise dos refugiados na Europa, eu viajei para a Grécia, um dos portais de entrada das pessoas em busca refúgio no continente europeu. Entre 2015 e 2016, mais de 1,5 milhão de crianças, mulheres e homens arriscaram suas vidas em travessias clandestinas entre a Turquia e Grécia. A sua motivação era proteção e novos começos. Durante minha estadia na Ilha de Lesbos, meu entendimento sobre hospitalidade aprofundou-se e, ao observar como que os gregos recebiam na época os refugiados, aprendi sobre um mito simbólico, que nos inspira a integrar qualidades como amizade e amor na relação entre anfitriões e visitantes.
Disfarçados de pobres viajantes, Zeus e Hermes visitaram diversos vilarejos em busca de refúgio para a noite. Os deuses bateram em diversas portas. Sem saber a real identidade dos deuses, os residentes repetidamente os mandaram embora. Todos rejeitaram os “visitantes indesejados” com exceção de um casal de idosos – Baucis e Filemon. O humilde, mas nobre casal, recebeu os visitantes em sua casa e generosamente serviu bebida e comida para os agora convidados. Após preencher as taças de madeira diversas vezes, Baucis notou que a jarra de vinho estava sempre cheia. Filemon então descobriu que os convidados eram na verdade deuses e logo ofereceu a sacrificar seu único ganso para alimentar os deuses. Zeus recusou a oferta. Tocado pelo gesto, Zeus recompensou a generosidade e hospitalidade do casal ao transformar seu humilde casebre em um belíssimo templo de pedras. Zeus também prometeu realizar o último desejo do casal: ser os guardiões do templo, morrer ao mesmo tempo e permanecer juntos pela eternidade. Enquanto o casal se transformava em árvores, cada um guardando um lado da entrada do templo, suas raízes penetravam pelo solo e seus galhos se estendiam pelos céus.
A história de Baucis e Filemon aparece no livro Metamorfoses, uma coleção de mitos escrita pelo poeta romano Ovídio no ano 8 D.C. Essa bela história narra a relação sagrada entre anfitriões e visitantes, encarnando a antiga tradição grega conhecida como filoxenia. Apesar de filoxenia ser comumente traduzida como hospitalidade, essa tradução não reflete o significado profundo da tradição. A etimologia da palavra revela que filoxenia é uma expressão de amor e amizade para com estranhos.
Em nossos tempos, refugiados e imigrantes são a personificação coletiva da busca de Zeus e Hermes por refúgio. Reduzidos ao status de “visitantes indesejáveis e não convidados”, refugiados e imigrantes estão cada vez mais sendo subordinados a restrições políticas e legais, e a violência xenofóbica. Num país desigual como o Brasil, podemos estender essa visão a fim de incluir a exclusão social vivenciada por grupos minorizados, como indígenas, pretos, comunidade LGBTQI+, pessoas em situação de rua, dentre outros vulneráveis. E a pergunta “como recebemos essas pessoas em nossos espaços públicos e privados, e na intimidade de nossos lares e coração” pode também guiar práticas de inclusão e responsabilidade social, implementadas por empresas da indústria da hospitalidade, terceiro setor e indivíduos de forma geral.
A Círculos de Hospitalidade foi criada do anseio de combater a xenofobia e da necessidade de humanizar nosso olhar com relação ao ‘outro’. Como organização, desenvolvemos projetos socioeconômicos, culturais e educacionais com o objetivo de facilitar a integração de refugiados e imigrantes às sociedades de acolhida. Nós criamos espaços para aprendizado, intercâmbio cultural, geração de renda, conexões e transformação social. Diante da pandemia, atendemos mais de 2.700 refugiados e imigrantes em SC e distribuímos cerca de 30 toneladas de alimentos entre março e dezembro. Com o financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM), fomentamos 75 empreendimentos em 2020 e ajudamos a concretizar ideias por meio do nosso programa de empreendedorismo.
Para além de ações práticas que geram impacto direto na vida de nossos beneficiários, criamos e nutrimos um senso de comunidade, uma rede de cooperação e solidariedade, contribuímos com o cultivo de um olhar empático e humanizado em nossa sociedade. Quando pessoas e famílias de outros países se sentem só e desamparadas, seguramos as mãos dessas pessoas e dizemos: vocês não estão sozinhas, estamos aqui com vocês, e nosso apoio vem na elaboração de currículos e busca por vagas de trabalho, no auxílio jurídico e regularização migratória, na atenção psicossocial e condução de oficinas de empoderamento feminino, na doação de alimentos e roupas, no sorriso e olhar que transparecem as palavras nós nos importamos!
Você e a sua empresa também podem se importar e integrar práticas de inclusão social em seu negócio de hospitalidade. Então se você estiver se perguntando “como EU e minha empresa podemos colaborar? Como podemos praticar hospitalidade que expresse amor e amizade para com estranhos?” nós podemos te auxiliar. Listamos abaixo cinco sugestões práticas de como apoiar a causa de refúgio.
- Contrate um refugiado e imigrante e conheça os benefícios de um ambiente de trabalho mais diverso, inclusivo e inovador. Conheça nosso banco de currículos, envie um e-mail para [email protected]
- Faça uma doação para a Círculos de Hospitalidade e ajude nosso trabalho. Você pode doar clicando aqui.
- Apoie a campanha #HumanizeSeuOlhar que visa reunir famílias refugiadas e imigrantes que estão separadas – enquanto os pais vivem no Brasil, seus filhos ficaram no país de origem. Você encontra mais sobre a campanha neste link.
- Siga nossas redes sociais @circulosdehospitalidade e @emporio.migrante e acompanhe nosso trabalho.
- Ajude a expandir a cultura da hospitalidade e a promover nosso trabalho e propósito – nos convide para falar sobre hospitalidade para sua equipe e/ou nas suas plataformas digitais.
O mito da filoxenia nos transmite lições profundas. Os estranhos que batem a nossa porta podem revelar-se presentes divinos, que nos ensinam sobre amizade e amor, generosidade e humildade. Esteja aberto a enxergar ‘o outro’, a oferecer oportunidades e expressar amor e amizade. O dar e doar com o coração não nos leva a escassez, pelo contrário. No mito, apesar de encher a taça de madeira com vinho diversas vezes, a jarra estava sempre cheia. A generosidade é uma troca que constrói pontes, quando damos algo – seja material ou parte de nós – também recebemos. O trabalho com populações refugiadas e imigrantes me ensina diariamente sobre resiliência e coragem.
Sem sombra de dúvidas, ao colocar minha vida a serviço dos mais vulneráveis, sou presenteada de formas difíceis de expressar e me torno, a cada dia, um ser humano melhor e mais consciente. Espero que você se sinta convidado a ser transformado junto comigo.
Conteúdo criado por Bruna Kadletz que dedica-se ao ativismo espiritual por meio de iniciativas humanitárias, escrita, palestras e facilitação de workshops. Com mestrado em Sociologia e Mudança Global pela Universidade de Edimburgo, Escócia, Bruna fez pesquisa de campo na África do Sul. Já atuou com comunidades refugiadas no Líbano, Jordânia, Turquia, Sérvia, França, dentre outros países. Ela é a idealizadora e co-fundadora do Círculos de Hospitalidade, sendo coordenadora de projetos na organização. Ela é associada do St. Ethelburga´s: Centro para Reconciliação e Paz, em Londres, Inglaterra. É autora do livro “Minha terra mora em mim”, da Editora Insular e está trabalhando em seu segundo livro “Desbravando Fronteiras”.
O conteúdo é de inteira responsabilidade do criador e não, necessariamente, reflete a opinião da Reed Exhibitions – organizadora da Equipotel.